Nijinski : uma figura de sonho
Não acreditaria num deus se ele não soubesse dançar!
Nietzsche
Foi belo como um deus mitológico e grande como uma figura de lenda. Sua vida voltou-se inteiramente para a dança. Isto é, “a arte de produzir e combinar movimentos”, tal e qual ele a definiu.
Foi, se assim se pode dizer, quem provocou o renascimento do bailado clássico, desde o século XVII, introduzido na Rússia, pelo Czar Alexei Mikailovitch, mas só verdadeiramente ressurgido com esse genial criador de ritmos, síntese de todos os artistas coreográficos, até então aparecidos no cenário do mundo.
Tão predestinado era, que um dia, havendo torcido o calcanhar e sendo examinado os raios X, estes mostraram ser a estrutura anatômica de seu pé muito próxima do sistema ósseo de um pássaro, levando o médico que o examinou a dizer que não se admiraria se um dia o visse voar, pois pela anatomia comparada o singular bailarino tinha, sob esse aspecto, mais característica de ave do que de homem!
Tudo isto, no entanto, haveria de ser fruto de um acentuado atavismo, porque antepassados do artista vinham, por sua vez, de outras gerações de mestres do bailado...
Marcado, assim, pelo estigma da glória, chegou Nijinski a ser o profeta, o guia, o evangelizador, capaz de criar um culto a que se devotaram inúmeros apóstolos da sua arte maravilhosa.
Criando, interpretando, escrevendo, às vezes, os seus próprios bailados, extasiou as platéias mais cultas de todos os recantos do globo, assombrando Paris numa época em que a música sofria as influências de Ravel, Stravinski, Debussy; a pintura, a de Picasso, a escultura, a de Rodin e a literatura, a de Marinetti...
Enquanto se reagia à influência do romantismo e Isadora Duncan criava, por assim dizer, uma arte nova, paradoxalmente regredida aos movimentos mais elementares da dança, Nijinski, revivendo nos moldes clássicos o bailado, impressionava as multidões...
A força que irradiava era tanta que Hoffmann passou a interpretar Chopin de maneira diferente, depois de o ver dançar as Sílfides e Debussy a querer escrever especialmente para ele, logo após assistir, deslumbrado, ao seu L’aprés-midi d’um Faune, em forma de bailado!
Por outro lado, aquela que foi mais tarde a sua esposa, não resistiu, um dia, ao vê-lo numa das suas criações famosas e, então, voltando os olhos para cima, balbuciou num sussurro de prece: “Grata, Senhor, que me permitistes viver neste século, para ver Nijinski dançar!”
Nijinski foi assim o supremo intérprete das idéias, através dos movimentos.
Depois de uma luta tremenda, que ela mesma conta em seu livro sobre Nijinski, Rômula (assim se chama) consegue, finalmente, casar-se com seu ídolo.
Mas, ao mesmo tempo em que se sente feliz de haver alcançado essa felicidade, teme perdê-la. Por quê? Não sabe. Pressentimentos, às vezes, a tornam triste:
“Meu Deus! Fazei Nijinski feliz!” É sua oração costumeira.
E desta forma os anos iam passando, de certo modo tranqüilos, entre a glória e a paz doméstica, já então acrescida de uma filha que mais unia aquelas duas vidas. É, então, a própria Rômula Nijinski quem escreve:
“Nossa vida íntima era idealmente feliz. Por vezes sentimentos estranhos me dominavam: parecia que as mulheres da mitologia deveriam ter experimentado as mesmas sensações que eu, quando se viam amadas por um deus. Enlevava-me o sentimento inexprimível de que Nijinski era mais que um ente humano. O êxtase de que ele era capaz no amor, como na arte, possuía uma qualidade purificadora e havia no seu ser qualquer coisa de inacessível, de impossível de ser atingido.”
Um dia, entretanto, parece que tudo se transforma. Nijinski principia a sofrer de horríveis dores de cabeça. Consultado um médico, este diz não se tratar de nada grave. Apenas chama a atenção para as glândulas, pois vê nas mesmas qualquer coisa que não o agrada.
Muito mais tarde, em conseqüência da guerra de 1914, o casal Nijinski vai repousar numa cidade da Suíça. Justamente por essa ocasião começam a surgir sintomas mais alarmantes. Já então, o pai implica com a própria filha e tem acessos de cólera com a mulher, coisa que até então nunca se havia dado. Às vezes, põe-se a correr através de fatigantes caminhos. Passa, depois, a ter crises de longos e incompreensíveis silêncios. Mergulha num mutismo impressionante. Começa a desenhar incessantemente e com uma rapidez fulminante conclui, em menos de três minutos, um desenho. Em seguida, abandona a mania dos desenhos e começa a escrever com obstinação. Anda pelas ruas com uma grande cruz no peito... Rômula o sente estranho mas atribui tudo isso a meros caprichos de artista, ou mesmo às crises existenciais, comuns em certas personalidades semelhantes.
Após longo período afastado dos palcos, e tendo os sintomas esquisitos desaparecido por completo, atribuindo-os a um simples esgotamento nervoso, certo dia pedem a ele para dançar em um recital de benemerência. Querem vê-lo dançar. Perto de duzentas pessoas já se acham reunidas no salão em que Nijinski irá reaparecer. Mas, para espanto de todos ele surge, apanha uma cadeira, senta-se e põe-se a olhar o público, como se estivesse a ler o pensamento de cada um dos espectadores. Todos estão como que suspensos por uma estranha emoção. Um silêncio profundo envolve a sala. Correm os minutos e a platéia parece hipnotizada. Os olhos do bailarino continuam cravados na assistência.
Daí a pouco, o pianista dá os primeiros acordes e faz de tudo para chamar a atenção de Nijinski. Mas, o homem não se move. É o momento, então, que Rômula, aproximando-se dele, diz-lhe, baixinho:
“Por favor! Por que é que você não começa?”
“Como? – respondeu, quase furioso. – Por que ousa me perturbar? Não sou máquina. Dançarei quando tiver vontade...”
Porém, daí a pouco Nijinski estremece. Parece tomado por uma força estranha e misteriosa e principia a dançar... Dançar aterradoramente. Apanha um tecido de veludo e com ele faz uma grande cruz no chão. Colocando-se em pé sobre o veludo, abre também os braços em cruz!
É o início do seu bailado trágico; mas antes de começá-lo, diz:
“Eu dançarei a guerra com todos os seus sofrimentos, suas destruições e suas mortes...”
E acrescenta:
“A guerra que não soubestes evitar e pela qual haveis de ser responsabilizados!”
Dito isto, dá um salto e rodopia no ar e dança, dança, dança...
A platéia está perplexa.
Quando parou de dançar, pareceu a todos que ele estivesse retornado de um outro plano... Havia um brilho impressionante em seu olhar...
Nietzsche
Foi belo como um deus mitológico e grande como uma figura de lenda. Sua vida voltou-se inteiramente para a dança. Isto é, “a arte de produzir e combinar movimentos”, tal e qual ele a definiu.
Foi, se assim se pode dizer, quem provocou o renascimento do bailado clássico, desde o século XVII, introduzido na Rússia, pelo Czar Alexei Mikailovitch, mas só verdadeiramente ressurgido com esse genial criador de ritmos, síntese de todos os artistas coreográficos, até então aparecidos no cenário do mundo.
Tão predestinado era, que um dia, havendo torcido o calcanhar e sendo examinado os raios X, estes mostraram ser a estrutura anatômica de seu pé muito próxima do sistema ósseo de um pássaro, levando o médico que o examinou a dizer que não se admiraria se um dia o visse voar, pois pela anatomia comparada o singular bailarino tinha, sob esse aspecto, mais característica de ave do que de homem!
Tudo isto, no entanto, haveria de ser fruto de um acentuado atavismo, porque antepassados do artista vinham, por sua vez, de outras gerações de mestres do bailado...
Marcado, assim, pelo estigma da glória, chegou Nijinski a ser o profeta, o guia, o evangelizador, capaz de criar um culto a que se devotaram inúmeros apóstolos da sua arte maravilhosa.
Criando, interpretando, escrevendo, às vezes, os seus próprios bailados, extasiou as platéias mais cultas de todos os recantos do globo, assombrando Paris numa época em que a música sofria as influências de Ravel, Stravinski, Debussy; a pintura, a de Picasso, a escultura, a de Rodin e a literatura, a de Marinetti...
Enquanto se reagia à influência do romantismo e Isadora Duncan criava, por assim dizer, uma arte nova, paradoxalmente regredida aos movimentos mais elementares da dança, Nijinski, revivendo nos moldes clássicos o bailado, impressionava as multidões...
A força que irradiava era tanta que Hoffmann passou a interpretar Chopin de maneira diferente, depois de o ver dançar as Sílfides e Debussy a querer escrever especialmente para ele, logo após assistir, deslumbrado, ao seu L’aprés-midi d’um Faune, em forma de bailado!
Por outro lado, aquela que foi mais tarde a sua esposa, não resistiu, um dia, ao vê-lo numa das suas criações famosas e, então, voltando os olhos para cima, balbuciou num sussurro de prece: “Grata, Senhor, que me permitistes viver neste século, para ver Nijinski dançar!”
Nijinski foi assim o supremo intérprete das idéias, através dos movimentos.
Depois de uma luta tremenda, que ela mesma conta em seu livro sobre Nijinski, Rômula (assim se chama) consegue, finalmente, casar-se com seu ídolo.
Mas, ao mesmo tempo em que se sente feliz de haver alcançado essa felicidade, teme perdê-la. Por quê? Não sabe. Pressentimentos, às vezes, a tornam triste:
“Meu Deus! Fazei Nijinski feliz!” É sua oração costumeira.
E desta forma os anos iam passando, de certo modo tranqüilos, entre a glória e a paz doméstica, já então acrescida de uma filha que mais unia aquelas duas vidas. É, então, a própria Rômula Nijinski quem escreve:
“Nossa vida íntima era idealmente feliz. Por vezes sentimentos estranhos me dominavam: parecia que as mulheres da mitologia deveriam ter experimentado as mesmas sensações que eu, quando se viam amadas por um deus. Enlevava-me o sentimento inexprimível de que Nijinski era mais que um ente humano. O êxtase de que ele era capaz no amor, como na arte, possuía uma qualidade purificadora e havia no seu ser qualquer coisa de inacessível, de impossível de ser atingido.”
Um dia, entretanto, parece que tudo se transforma. Nijinski principia a sofrer de horríveis dores de cabeça. Consultado um médico, este diz não se tratar de nada grave. Apenas chama a atenção para as glândulas, pois vê nas mesmas qualquer coisa que não o agrada.
Muito mais tarde, em conseqüência da guerra de 1914, o casal Nijinski vai repousar numa cidade da Suíça. Justamente por essa ocasião começam a surgir sintomas mais alarmantes. Já então, o pai implica com a própria filha e tem acessos de cólera com a mulher, coisa que até então nunca se havia dado. Às vezes, põe-se a correr através de fatigantes caminhos. Passa, depois, a ter crises de longos e incompreensíveis silêncios. Mergulha num mutismo impressionante. Começa a desenhar incessantemente e com uma rapidez fulminante conclui, em menos de três minutos, um desenho. Em seguida, abandona a mania dos desenhos e começa a escrever com obstinação. Anda pelas ruas com uma grande cruz no peito... Rômula o sente estranho mas atribui tudo isso a meros caprichos de artista, ou mesmo às crises existenciais, comuns em certas personalidades semelhantes.
Após longo período afastado dos palcos, e tendo os sintomas esquisitos desaparecido por completo, atribuindo-os a um simples esgotamento nervoso, certo dia pedem a ele para dançar em um recital de benemerência. Querem vê-lo dançar. Perto de duzentas pessoas já se acham reunidas no salão em que Nijinski irá reaparecer. Mas, para espanto de todos ele surge, apanha uma cadeira, senta-se e põe-se a olhar o público, como se estivesse a ler o pensamento de cada um dos espectadores. Todos estão como que suspensos por uma estranha emoção. Um silêncio profundo envolve a sala. Correm os minutos e a platéia parece hipnotizada. Os olhos do bailarino continuam cravados na assistência.
Daí a pouco, o pianista dá os primeiros acordes e faz de tudo para chamar a atenção de Nijinski. Mas, o homem não se move. É o momento, então, que Rômula, aproximando-se dele, diz-lhe, baixinho:
“Por favor! Por que é que você não começa?”
“Como? – respondeu, quase furioso. – Por que ousa me perturbar? Não sou máquina. Dançarei quando tiver vontade...”
Porém, daí a pouco Nijinski estremece. Parece tomado por uma força estranha e misteriosa e principia a dançar... Dançar aterradoramente. Apanha um tecido de veludo e com ele faz uma grande cruz no chão. Colocando-se em pé sobre o veludo, abre também os braços em cruz!
É o início do seu bailado trágico; mas antes de começá-lo, diz:
“Eu dançarei a guerra com todos os seus sofrimentos, suas destruições e suas mortes...”
E acrescenta:
“A guerra que não soubestes evitar e pela qual haveis de ser responsabilizados!”
Dito isto, dá um salto e rodopia no ar e dança, dança, dança...
A platéia está perplexa.
Quando parou de dançar, pareceu a todos que ele estivesse retornado de um outro plano... Havia um brilho impressionante em seu olhar...
VASLAW NIJINSKI
Da paixão à loucura
NIJINSKI estudou na Escola Imperial de Ballet, em São Petersburgo (atual Leningrado), graduando-se em 1908. Logo em seguida foi escolhido por Serge Diaghilev como principal dançarino da companhia que apresentou em Paris em 1909. Dotado de uma técnica extraordinária, a ponto de ser chamado 'o deus da dança', 'a oitava maravilha do mundo' e 'o Vestris do norte' (referência ao bailarino francês Auguste Vestris, junto ao qual seria sepultado, no cemitério de Montmartre, Paris), Nijinski obteve grandes êxitos interpretando os balés "Petrouchka", "Le Carnaval", "Scheherazade" e "O Espectro da Rosa". Coreógrafo ousado e original, deixou, entre outras, as seguintes criações:
- L'Après-midi d'un Faune
- A Sagração da Primavera
- Till Eulenspiegel
Ao seu casamento com a condessa Romola Pulski, seguiu-se um dramático rompimento com Diaghilev e o cancelamento de seu contrato. Em 1929, Nijinski, acometido de distúrbio mental, abandonou o palco. Seu impressionante Diário, escrito em 1918/19, foi publicado por Romola em 1936.
Aos 29 anos, acometido por distúrbio mental (esquizofrenia), abandonou os palcos. A esquizofrenia do bailarino caracterizava-se, sobretudo pela desordem de pensamento. Essa marca é bastante evidente em trechos de seus diários: " Tenho uma copeira seca, porque sente. Ela pensa muito, porque foi dissecada no outro lugar onde ela serviu por muito tempo". Seu impressionante diário, escrito em 1919, foi publicado por Romola de Pulszki em 1936 Entretanto, nessa versão, Romola eliminou um terço dos textos originais, suprimindo todos os versos e vários trechos com passagens eróticas.
Nijinski passou por inúmeras clínicas psiquiátricas até completar os 60 anos. Morreu em uma clínica em Londres em 1950. Somente em 1995 uma edição integral dos originais de seu diário foi publicada na França, pela editora Actes Sud, graças ao consentimento da filha de Nijinski, Tamara.
Fonte:
http://www.samamultimidia.com.br
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