22 de abril de 2010

Michael Ende

Michael Ende: uma inteligência a serviço do bem

 

Um escritor? Um inventor! Um inventor de realidades fantásticas e maravilhosas, de mundos que coexistem e se entrelaçam, de dimensões mágicas que se ligam por corredores de tempo e espaço, onde a lógica não tem vez e as leis da Física não valem mais do que as da imaginação. Um arquiteto, que organiza em uma única construção uma série de mundos paralelos, cada qual com suas próprias leis, sem se esquecer de pintar seus detalhes com o primor cuidadoso de um miniaturista. Um simpático guia de viagem, que nos mostra uma paisagem de sonho, demorando-se generoso a comentar suas menores peculiaridades, mas que a qualquer momento pode nos fazer saltar inesperadamente para uma outra paisagem que está por trás da primeira, ou então abaixo, acima, ou mesmo dentro dela. Mas também um pensador  que não esquece a realidade em que vivemos todos os dias, que diagnostica seus males, seus problemas, suas contradições, ao mesmo tempo em que acena com a esperança da superação e da redenção. E, ainda, um educador que ensina as crianças brincando enquanto aprende seriamente com elas. Um advogado que alça corajosamente a voz pelos direitos da infância, e, por isso, do ser humano. Esse é Michael Ende, o escritor Michael Ende. 

E que escritor! Romancista, contista, poeta, dramaturgo, libretista, roteirista e ensaísta, Ende (1929-1996) é o autor alemão de maior sucesso do pós-guerra. Suas obras foram traduzidas para mais de quarenta línguas e alcançaram uma tiragem mundial de mais de vinte milhões de exemplares. Seus romances A História sem Fim e Manu,a Menina que Sabia Ouvir foram adaptados para o cinema, atingindo relativo sucesso (especialmente A História sem Fim, filmada em três episódios, o primeiro dos quais já é um clássico). E embora tenham desagradado o autor e muitos de seus mais exigentes leitores, esses filmes dão indiscutível mostra do talento, inteligência e inventividade de Ende. Apesar de sua obra voltar-se predominantemente para o público infanto-juvenil, ele fascinou e cativou um contingente que abrange todas as faixas etárias. Mas sua mensagem tocou sobretudo os jovens, que peregrinavam de mochila nas costas em caravanas até a Casa do Unicórnio (foi assim que Ende batizou sua residência nas imediações de Roma) para ver de perto o seu escritor, coisa bem rara na literatura.
Isto tudo poderá surpreender muitos sul-americanos interessados em literatura. Alguns simplesmente desconhecerão Ende, e outros não estarão acostumados a pensar nele como um autor relevante. Treze de suas obras estão traduzidas para o português, mas não costumam freqüentar as estantes das livrarias e bibliotecas. Michael Ende deveria ser lido nas escolas primárias e discutido nas universidades. Deveria ser presença constante nos palcos, no cinema e na televisão. Deveria suscitar reflexões e debates nos campos da pedagogia, da ecologia, dos direitos humanos e da crítica da cultura em geral. Mas nada disso acontece. Por quê?
Várias razões concorrem para isso. No que toca às academias, Ende é marcado com o estigma da literatura infanto-juvenil, o que, para os narizes empinados de uma intelectualidade imatura, significa quase o mesmo que “literatura menor”, material indigno de penetrar nos santuários restritos da crítica literária. Porém, embora ele reproduza, em grande parte de seus livros (especificamente os que são dirigidos ao público infanto-juvenil), os mecanismos mágicos  da imaginação da criança e se utilize de ingredientes lúdicos, sua obra é dirigida a todas as faixas etárias, dado que é marcada pela presença constante da questão existencial.  É verdade que os adultos  têm condições de desfrutar de seus conteúdos muito mais do que as crianças, justamente por alcançarem o significado da simbologia que a permeia, a qual expressa a busca do homem pelo sentido da vida e pela transcendência.
Já no que se refere ao público infanto-juvenil, há o problema da perda do hábito da leitura. Este é um aspecto de um problema maior, que constitui um dos temas centrais das obras de Ende: o definhamento progressivo das características que distinguem estes primeiros períodos da vida humana. A cada dia mais apressados e preocupados, vivendo no ritmo dos adultos e compartilhando compulsoriamente com eles a solidão e os medos inerentes à vida das cidades contemporâneas, crianças e adolescentes simplesmente não têm mais tempo nem oportunidade de desenvolver sua capacidade de fantasiar, suas faculdades lúdicas e criativas. Vivem em uma sociedade onde tudo já está determinado e organizado milimetricamente, e onde não há mais nenhum espaço para inventar o que quer que seja. Prematura e violentamente submetidos a uma rotina massificadora e neurotizante, eles não conseguem mais suportar nada que requeira paciência. Qualquer coisa que não tenha a velocidade dos videogames lhes é irritante. Tornam-se assim incapazes de apreciar essas atividades tão antigas e distintivas da infância que são o ouvir e o ler histórias. Como então esperar que estes pobres pequenos adultos venham a empregar seu tão exíguo tempo debruçando-se sobre as páginas de Jim Knopf, Manu ou A História sem Fim? Mas deve-se notar que a literatura não seria a única forma de fazer com que o público infantil tomasse contato com a obra de Michael Ende. Como também é verdade que o nome de Ende tem estado ausente até mesmo das campanhas de incentivo à leitura, embora ele possa ser considerado como um dos escritores que mais estimularam até hoje o ato de ler, tanto pela forma como pelo conteúdo de suas obras.
Deve haver então algum motivo suplementar que possa explicar a pouca atenção que ele tem recebido entre nós. Realmente há um, e a esta altura já se pode bem atinar qual seja. Ende é um crítico da sociedade contemporânea, eis a solução do enigma. De fato, ele é um dos mais importantes críticos não só da sociedade, mas também da cultura e da civilização ocidental. Suas idéias estão em flagrante desacordo com os pseudovalores que sustentam o mundo atual. Ele defende o resgate dos verdadeiros valores, que, apesar de sumamente humanos, abalariam as estruturas das várias esferas de poder: do poder político, do econômico, do acadêmico/científico e do poder dos meios de comunicação e divulgação da cultura. E, o que é mais interessante, faz tudo isso com talento, criatividade, humor e alegria.
“Esse senhor é o fim! É uma pedra no nosso caminho e em  nossos sapatos.” Assim falariam os senhores cinzentos, os ladrões que roubam o tempo das pessoas e perseguem a pequena Manu, se Ende, com sua liberdade criativa, lhes tivesse concedido a faculdade de perceber quem estava por trás da meiga criança que sabia ouvir. Certamente fariam de tudo para impedir a circulação não só do livro do qual são personagens, mas de todos os outros de Michael Ende.
E quem garante que tais ladrões não existam de verdade? E se não é assim, então alguém responda: onde está o tempo das pessoas? E mais: onde estão os livros de Ende? 


Residência de Michael Ende
em Roma, Casa do Unicórnio

 
Crítica social: ciência e capitalismo na mira de Ende
Em 1971, Michael Ende muda-se para uma pequena cidade ao sul de Roma. Não foi só pelo clima aprazível, pelas belas paisagens e pela amabilidade do povo italiano que ele se instalou lá. Pesou bastante em sua decisão de fazê-lo o clima intelectual reinante nos círculos literários alemães. Vigorava então em seu país um tipo de patrulhamento ideológico semelhante ao que se verificou na América Latina na mesma época, se bem que, certamente, com menor intensidade. A crítica literária alemã media a relevância de um autor através de alguns critérios básicos: cobrava-se uma descrição realista da sociedade, a crítica social e política engajada, a reflexão sobre os movimentos e problemas populares, e coisas do gênero. Não era o ambiente em que um escritor inclinado ao fantástico e ao místico pudesse se sentir à vontade. Seus escritos eram classificados como literatura escapista e como fuga da realidade. Avesso a discussões estéreis, ele foi atraído pelo ar mais leve da Itália, e foi esse o país que viu surgir suas maiores obras-primas.
E essas obras mostram claramente a injustiça das acusações de seus colegas alemães. Pois nelas, sem renunciar ao fantástico, Ende realiza uma crítica absolutamente consistente da sociedade. De fato, ninguém mais do que ele tinha consciência da crise do mundo moderno. Porém, ao contrário do que acontecia na literatura “engajada”, não a compreendia simplesmente como crise política, social ou econômica, e sim como crise espiritual e existencial. Para Ende, a grande ameaça à civilização não eram as guerras, a miséria, os conflitos de classe ou o problema ecológico. Todos esses males eram, a seu ver, apenas resultados e manifestações visíveis de uma patologia mais profunda e mais perigosa que ele combateu incansavelmente durante toda a sua produção: a perda do sentido da vida humana, ou, como ele se expressa simbolicamente em A História sem Fim, o domínio do Nada. E como pensador atento que era, soube enxergar no materialismo científico (na falsa ciência)e no capitalismo os grandes protagonistas da diluição do sentido da existência. Toda a sua literatura pode ser lida como uma denúncia dos efeitos negativos desses dois fatores históricos sobre o espírito humano.
A ciência, no estado materialista em que ainda se encontra, havia levado a efeito aquilo que Max Weber chamou de “desencantamento do mundo”, ou seja, o processo no qual o mundo perdeu pouco a pouco, aos olhos dos homens, todo o mistério e todo o encanto. O processo no qual todos os mitos e as concepções mágicas e religiosas da natureza foram sendo substituídas pela visão cientificista do mundo, baseada na suposição arrogante de que tudo o que existe pode ser perfeitamente compreendido pelo intelecto humano. Sob tal ótica, toda a poesia tende a ser eliminada da face da Terra, assim como o sentimento do sublime e a esperança de uma relação do homem com algo maior do qual ele faz parte. Estes, porém, são os sentimentos mais caros ao ser humano, e os que sempre haviam dado um significado à sua existência. Sem eles, a vida se torna insípida e quase que um fardo.
O desencantamento do mundo é o que faz da ciência um tema constante na obra de Ende. O escritor estende a crítica que faz à  ciência também aos sistemas filosóficos e, em geral, a todas as criações do intelecto humano, com suas ridículas pretensões ao saber absoluto. Esse traço de sua obra pode ser encontrado sobretudo em sua produção destinada ao público adulto. Especialmente nas coletâneas de contos O Espelho no Espelho e A Prisão da Liberdade, nas quais a sátira e o humor levemente sarcástico são às vezes utilizados para desmascarar o embuste cientificista e intelectual. Mas há também suas palestras, entrevistas e colóquios, nos quais o tema é tratado de forma mais objetiva. É particularmente feliz nesse aspecto a série de vídeos intitulada O Romance de Einstein (Einstein Roman), produzida em colaboração com a TV japonesa, na qual a figura de Einstein é utilizada como símbolo da ciência e da visão cientificista de mundo, bem como de seus perigos.
Quanto ao capitalismo, a crítica de Ende se concentra na mecanização do ser humano. O capitalismo impôs a toda a sociedade o ritmo frenético da produção industrial, sempre acelerado pela corrida tecnológica e pela competição. Submissos ao movimento inexorável dos ponteiros do relógio, assim como os remadores das galés o eram aos golpes surdos do tambor, os homens da era capitalista foram obrigados a cronometrar e planejar todas as suas ações com uma precisão que só se pode esperar de máquinas. E isso já se incorporou de tal forma às suas vidas que consideram qualquer ação que não se enquadre no rígido planejamento pragmático como um absurdo. Mesmo quando seus corpos param, suas mentes continuam girando no movimento inercial das preocupações e das incertezas. É como se houvessem entrado, não se sabe como nem porquê, numa ciranda vertiginosa e caótica, que a cada dia gira mais rápido e ninguém sabe como parar. E ninguém se atreve a parar por conta própria, com medo de ser arrastado e pisoteado pela massa em movimento. O resultado é um homem que não pode dispor de seu tempo, o que significa dizer que não possui mais seu próprio tempo. Mas a lição de Manu é a de que o tempo não é algo separado da vida, algo que se possa armazenar, poupar ou gastar, como o dinheiro. O tempo é a própria substância da vida, que não pode existir senão nele. Por isso, o homem que não dispõe de seu tempo se aliena de sua vida, permite que ela se lhe escoe pelas mãos, perdendo de vista o significado.
Também concernentes ao capitalismo são as críticas de Ende ao consumismo, ao culto ao dinheiro e à especulação financeira como forma de escravização. Todos estes temas são abordados com maestria literária em várias obras, especialmente em Manu, a Menina que Sabia Ouvir (sobre o consumismo, vale lembrar o trecho no qual um homem cinzento tenta cooptar a protagonista através da “boneca perfeita”), também em O Espelho no Espelho (o conto da catedral do dinheiro, por exemplo) e em A Prisão da Liberdade (As Catacumbas de Misraim). 

Fantasia: a chave do real
Apesar de seu posicionamento em relação ao capitalismo, Michael Ende se distancia diametralmente do discurso esquerdista. Em primeiro lugar, porque não é exatamente o capitalismo – e tampouco a ciência – o que ele combate, mas sim a perda do sentido da vida humana. Cientificismo e capitalismo são apenas fatores históricos que aceleraram o agravamento do problema existencial humano. Em segundo lugar, porque considera que a transformação da sociedade tem de ser precedida por uma regeneração interior do indivíduo, equivalente à redescoberta do sentido da existência.
Em sua obra, Ende demonstra possuir a convicção de que este sentido deve ser buscado no interior do espírito humano, pois pressente que ali devem existir riquezas inestimavelmente valiosas que, apesar de sufocadas e fortemente reprimidas pelo desencantamento e pela mecanização, não foram corrompidas por sua ação, conservando-se ainda intactas, à espera de algum intrépido caçador de tesouros que as quisesse resgatar. Desde o início de sua produção, Ende percebeu instintivamente que seu caminho artístico era o de realizar esse resgate a fim de extrair do íntimo do ser humano os elementos que pudessem restituir o sentido à vida.
Nesse caminho ele certamente precisou sempre perscrutar seu próprio interior. Mas isso não era suficiente. Era ainda necessário encontrar os meios expressivos que possibilitassem a simbolização da riqueza interior, de modo que os símbolos assim criados pudessem servir de pistas para o itinerário que o leitor teria de fazer, por sua vez, dentro de si mesmo. Foi essa necessidade  que tanto o aproximou do surrealismo, que conheceu através do pintor Edgar Ende, seu pai; e, mais tarde, da literatura fantástica (Jorge Luís Borges e Kafka são claríssimas influências no estilo literário de sua obra “adulta”, assim como Tolkien o é em sua obra infanto-juvenil). Freqüentemente se comenta a ligação de Ende a essas escolas, e às vezes corre-se o risco de esquecer que o autor perseguia nelas, essencialmente, apenas os meios de expressão para idéias e conteúdos marcantemente próprios.
O que ele chama de “fantasia” não é outra coisa senão essa arte de expressar e compreender os conteúdos profundos da alma humana através de símbolos. Ele sabia muito bem que isso não era invenção sua, mas uma faculdade tão antiga quanto o homem. Os povos primitivos, quando criavam seus mitos, utilizavam a fantasia, assim como os místicos (Ende estudou Jakob Böhme, cabala, budismo e zen), os poetas e artistas em geral (“Fantasia foi criada por todos os artistas”, disse Ende, referindo-se ao mundo encantado de A História sem Fim) e também as crianças, com os jogos e invenções de sua espontaneidade criativa.
Vê-se então que “fantasia”, em Ende, não é fuga da realidade, mas sim descoberta e revelação de uma realidade mais essencial que permanecia oculta. Essa nova dimensão do real não é buscada em detrimento da realidade cotidiana, mas em seu benefício. Ao recorrer à fantasia, Ende não quer fugir do mundo, mas melhorá-lo. É ele mesmo que explica: “O reino mágico do imaginário é a própria Fantasia, à qual é preciso viajar para tornar-se vidente. Então pode-se voltar à realidade exterior com uma consciência transformada, e transformar essa realidade, ou pelo menos vê-la e vivê-la de maneira nova”.
A boa poesia, disse Ende, transforma o mundo. Num momento em que a literatura tantas vezes escolhe o niilismo ou o sarcasmo como a última saída, e em que a arte como um todo parece se resignar a decair no mero esteticismo, vale a pena prestar atenção a essa afirmação. Ela pertence à consciência dos que realmente compreendem a essência do fazer artístico. 

Jim Knopf e Lucas, o Maquinista
Este é o primeiro livro de Ende, cuja publicação (em dois volumes, o segundo chama-se Jim Knopf e os Treze Piratas) foi recusada pelas editoras de seu próprio país, tendo recebido, felizmente, acolhida em outro, a Áustria.
Jim é um menino negro, órfão, de origem desconhecida, e seu amigo Lucas, um habilidoso e simpático maquinista. Ema, a locomotiva que lhes permite viajar juntos pelo mundo, representa o ideal humano de realização do bem quando manifestado de forma incondicional e ilimitada. Ema é capaz de correr sem trilhos sobre a terra, flutuar na superfície do mar, submergir como um submarino nas profundas águas do oceano e voar pelo espaço. Essa sua admirável disponibilidade reflete o estado de espírito de seus dois tripulantes, que não medem esforços para auxiliar as pessoas diante das inúmeras situações com que se deparam em sua longa viagem. Após uma grande aventura permeada de suspense e de encanto poético, retornam para casa triunfantes, trazendo consigo os frutos de uma viagem marcada pelo altruísmo. Como recompensa pelo bom trabalho realizado em todos os lugares por onde passaram, a minúscula ilha de origem, de onde tiveram que sair por falta de espaço, une-se a uma outra  ilha que emerge na superfície do mar formando um grande continente, que dá acolhida a todos os que compartilham do mesmo sonho de Jim e Lucas. O acontecimento a que Jim, Lucas e todos os seus amigos assistem – a emersão do continente – é em tudo oposto ao dilúvio, o qual, ao contrário, faz imergir  a terra nas águas e ameaça de morte os homens. Assim, os personagens de Jambala (nome da nova terra) são premiados com os efeitos do antidilúvio, que lhes proporciona a solução para o problema do espaço que até então os afligia.
Jim descobre no final que é descendente de Gaspar, um dos reis magos, o de pele negra, e que seu destino é liderar seu povo. É nesse ponto que Ende revela sua concepção de amor universal, uma vez que elege um negro para ser o rei e herói de sua história. Ende, como germânico, conhecia bem a prepotência associada ao orgulho de se pertencer à  raça branca e certamente sabia da origem falaciosa e ideológica desse orgulho, já que o branco não é outra coisa senão a soma de todas as cores. Em contrapartida, a cor negra representa a ausência de cor, o que permite considerá-lo como símbolo da ausência de ideologias e, conseqüentemente, de preconceitos raciais. Com isso Ende ensina que as possíveis divergências entre os homens devem ser superadas em função do reconhecimento da autoridade de um líder natural, que prime pela humildade. A coroa pertence ao mais humilde: eis a concepção cristã que vigora em sua obra de forma implícita. Além disso, é preciso fazer prevalecer o amor para que se possam superar as diferenças entre os homens. Assim, Ende decide unir Jim a uma menina da raça amarela, união essa que é comemorada apoteoticamente no final. E tudo indica que essa decisão literária do autor foi  premonitória em relação à sua própria pessoa, pois  ele se casou em segundas núpcias com uma oriental, tendo passado parte de sua vida no Japão. 

Manu, a menina que sabia ouvir
Se em A história sem fim o nada ameaça acabar com o reino da Fantasia, cuja imperatriz é a criança, em Manu, a Menina que Sabia Ouvir, esse mesmo nada é representado pelos homens cinzentos, que simbolizam a ilusão do mundo materialista. Conforme um dos próprios cinzentos confessa, eles, de fato, não existem. São apenas personificações do vazio que domina a sociedade. Sua existência é feita do tempo que roubam das pessoas. Corrupção e sedução em função do lucro, usura, especulação financeira e consumismo são os principais recursos usados por eles para automatizar os homens, de modo que não lhes seja permitido refletir. Dessa forma, criam o tédio e depois induzem-nos a consumir produtos com a promessa de livrá-los do mesmo tédio, o que, na realidade, é um sutil engodo que só o faz aumentar. Tal círculo vicioso priva as pessoas  de sentir a alegria de viver e os submete a uma degradante e sinistra escravidão.
Em meio à sociedade dominada pelos homens cinzentos, Manu representa um perigo à ilusão (simbolizada na história pelos vilões), que planejam destruí-la, sem nunca conseguir alcançar tal objetivo. É tão forte a sua presença que todos a procuram para expor seus problemas, geralmente com o objetivo de queixar-se dos outros, e acabam, no meio dos relatos, admitindo seus erros e compreendendo a necessidade de reconciliar-se com tais pessoas. Não há como não reconhecer que ela simboliza a consciência humana, cujo destino é ser resgatada por cada um.
Com relação ao tempo, Manu é a única que está no presente, o que significa que é também a única a possuir seu próprio tempo, ao contrário das outras pessoas, que o esbanjam por não conseguirem viver seu  momento presente: estão sempre ligadas ao passado ou ao futuro. Nunca estão realmente no presente. Em Manu, a máxima inocência equivale à máxima sabedoria: ela é uma iniciada que se torna consciente do mistério que envolve o tempo. A partir de então, os cinzentos não podem mais ter qualquer poder sobre ela. Essa é a chave de sua vitória sobre eles, a qual lhe permite restituir o tempo de todos os homens a seus verdadeiros donos. 



Michael Ende e seu pai,
Edgar Ende comtemplando
uma pintura

 
A história sem fim
Bastian – cujo nome deve ser ligado à sua origem latina, da qual provém o nosso termo bastião – é de fato o bastião, o guardião  de um reino em perigo. Em princípio, tal posição parece não se casar muito bem com a figura de um garoto gordo, de óculos, que precisa estar sempre fugindo das perseguições dos colegas de classe, cuja sensibilidade foi praticamente arrasada pela esclerose de um sistema educacional que estimula a competição, que premia a hipocrisia e trata cruelmente os que não conseguem se enquadrar – geralmente, os mais criativos. Em meio a eles, Bastian se destaca, não por qualquer qualidade física ou intelectual, mas por ser o único que ainda é capaz de ler em toda a classe e, talvez, no mundo. Dissemos “ainda” porque Bastian lê de uma maneira há muito desusada, e já quase esquecida. Lê por imersão, sente e vive o que está lendo, participa das aventuras dos livros. Entra nelas.
Pode-se imaginar o que ele sentiu quando lhe caiu em mãos um livro chamado A História sem Fim. Era o que ele sempre havia almejado: uma história que nunca acabasse. Aquele devia ser “o livro dos livros”. E era, pois contava a história de um reino que abrigava todas as produções da fantasia humana em todos os tempos, todos os seres monstruosos ou maravilhosos, todas as paisagens encantadoras e fantásticas de todas as sagas, narrativas e mitos já criados pela imaginação dos povos, dos artistas e dos sonhadores. Esse reino chamava-se Fantasia, e corria perigo, pois uma potência desconhecida chamada Nada se espalhava por vastas extensões de seu território, deixando à sua passagem apenas um vazio, um nada. Isso era o reflexo do que acontecia no mundo dos seres humanos, pois ali ninguém mais parecia se interessar pelos seres e histórias que compunham Fantasia. Ningúem exceto Bastian Balthasar Bux. Por isso, ele foi o escolhido para salvar o reino ameaçado. Realiza então aquela que deve ser considerada a maior proeza para um leitor de aventuras: torna-se personagem do livro que está lendo; entra, literal e literariamente, em Fantasia, reino que finalmente consegue salvar através de meios que não devem nem podem ser expostos em uma sinopse como esta.
Bastian é auxiliado, em suas façanhas, pela força de um amuleto no qual estão representadas duas serpentes, cada uma das quais morde a cauda da outra. Este símbolo possui não um, mas vários significados, que estão estreitamente ligados. Um deles é a relação intrínseca entre a dimensão da fantasia e a do mundo humano, o que constitui, como já se viu, uma idéia fundamental na obra de Ende. Da mesma forma que a devastação de Fantasia tem origem no mundo dos homens, essa devastação é também a causa da desertificação deste mesmo mundo. À medida que Fantasia se retrai e encolhe, mais o homem se robotiza e mais sua existência vai, aos poucos, perdendo o sentido. Seus ideais se esvaecem à medida que são atingidos pelo nada. O destino dos dois mundos estão indissoluvelmente ligados, e é por isso que, ao salvar Fantasia, Bastian salva também, sem o saber, o mundo dos homens. Um outro significado é o do infinito e da eternidade. Desde as mais remotas eras, o círculo ou a cobra que morde a própria cauda representam o infinito, pois são imagens nas quais o fim se confunde com o início. No presente caso, a imagem representa a infinidade da história de Fantasia: ela nunca terá fim enquanto houver alguém em cuja imaginação ela puder continuar. Bastian salva Fantasia já ao começar a leitura do livro: as aventuras de Atreiú – personagem que recebe da Imperatriz-Criança a missão de atrair Bastian para Fantasia – na primeira parte do livro lido por Bastian, têm o único objetivo de prender sua atenção. Uma vez fisgado o leitor, Fantasia vive e se perpetua nele e através dele. 



 Passeio na Floresta
(1970) - Quadro
pintado por Luise Ende
 
E a história continua ainda em uma outra dimensão, na nossa dimensão. O livro de Ende contém o livro lido por Bastian, e por isso ele mesmo é a própria História sem Fim. Ao ler esta obra, nós mesmos somos fisgados por Bastian, da mesma forma como ele o é por Atreiú. O menino gordo e de óculos salva Fantasia e o nosso mundo porque ele consegue fazer com que Fantasia viva e se perpetue em nós. Essa é a mágica que faz realmente infinita a história de Fantasia. Essa mágica é a imantação de uma corrente sem fim, cujos elos são o leitor, Bastian, Atreiú, a Imperatriz-Criança e, como elo inicial, aquele que chamou à existência a Imperatriz-Criança, Atreiú e Bastian: Ende – cujo nome significa fim


Michael Ende e sua
mãe Luise Ende 

Bastian e Manu: duas sagas pelo fim do nada
É claro que Ende acredita na arte como instrumento de superação do nada, da falta de sentido. Mas ele também sente a necessidade de encontrar um aliado para a arte. Pois, em sua longa trajetória, ela sofreu as insistentes investidas do nada e hoje sente as consequências do ataque. Aliou-se ao pensamento cientificista e filosófico. Intelectualizou-se, desencantou-se. Tornou-se conceitual ou realista. Aderiu assim a uma visão de mundo estranha à sua natureza original. Além disso, ela tem os movimentos tolhidos pelo peso de sua própria tradição. Vinte e cinco séculos de história da arte se acumulam sobre os ombros do artista contemporâneo, o qual já não consegue encontrar, em meio a esta densa floresta, a fonte da originalidade. Ele renuncia ao novo e investe em uma falsa novidade, que é, em última análise, apenas repetição. E, como se não bastasse, a arte acabou ainda por entrar na ciranda capitalista. Tornou-se mercadoria e sujeitou-se ao mercado. 


 A Mulher sobre a tartaruga
(1933)
Edgar Ende - Óleo sobre tela 70 x 90 cm
 
Realmente, a arte precisa de um aliado, precisa de algo que a possa ligar novamente à fonte da fantasia. Mas onde encontrá-lo? No mito? Ende não tem ilusões. Percebe que, no ponto a que chegamos, após todos estes séculos de domínio de uma visão materialista-intelectual da realidade, seria simplesmente uma quimera “voltar ao mito”. Por razões semelhantes, é muito restrito o auxílio que os místicos e as tradições religiosas podem oferecer. Ambos podem ser utilizados como fonte de inspiração, mas perderam a capacidade de influenciar significativamente a sociedade. Assim como à arte, lhes falta o acesso à sua fonte primeira, e por isso decaíram na rigidez doutrinária e no sectarismo. Mas Ende não concebe lugar para o derrotismo, pois, no mundo atual, ainda há uma região – uma única região – onde a fantasia ainda flui com todo o seu vigor original: o coração da criança.
Para o escritor, a imaginação infantil aparece como a própria fantasia em estado puro, intocada pelo poder do nada, pois as crianças são seres ainda não adaptados ao desencantamento e à robotização. Por isso, elas são também símbolos da eterna juventude da fantasia, de sua inexauribilidade. É isso o que concede à criança o lugar de destaque de que ela goza na literatura de Ende.
Tanto Manu como Bastian reúnem em si, em máximo grau, as principais virtudes da infância. Vivem numa sociedade que decidiu banir definitivamente a fantasia e que já está prestes a alcançar essa meta, pois já nem mesmo as crianças podem se pôr a salvo da força paralisante do nada, e se afastam-se cada vez mais cedo da infância. Nessa sociedade, Manu e Bastian só podem ser outsiders, seres marginalizados, inadaptados (e, na verdade, inadaptáveis) a um mundo que se desumaniza a olhos vistos. Mas, justamente por esse motivo, eles aparecem sob uma aura literalmente heróica: como última salvaguarda da fantasia, concentram em si toda a esperança da humanidade, da mesma humanidade que os marginaliza. São heróis no sentido mais forte do termo: em suas mãos repousa a tarefa de salvar o mundo. E ao combater e finalmente vencer o nada, ambos efetivamente salvam o mundo. Mas – e aqui está o traço mais encantador destes pequenos Ulisses – eles mesmos parecem não ter noção da dimensão e da importância de sua proeza. A rigor, não sabem que são heróis! São e continuam sendo apenas crianças... 

 

O Perigo
(1931) - Edgar Ende
Óleo sobre tela 90 x 120 cm
 
Para fazer justiça à dimensão da influência do pintor Edgar Ende sobre seu filho Michael, é importante ressaltar que ela se deu tanto no que se refere à temática abordada pelo escritor quanto nos métodos criativos, e, ainda, na própria idéia da arte como forma de simbolização dos conteúdos profundos da consciência humana. Edgar foi sem dúvida a personagem que mais influenciou Michael, como homem e como artista. Tanto é que o escritor chegou a dizer que sua literatura constitui uma tentativa de expressar em palavras o mundo das imagens criadas pelo pai. Mas o reverso também acontecia: Edgar várias vezes pintou o que Michael escrevia. O óleo acima é um excelente testemunho da singular interação artística estabelecida entre estes dois seres que tiveram a sorte de vir ao mundo como pai e filho. Eis, resumidamente, a história das imagens imortalizadas por Edgar Ende:
Certa vez, o jovem Michael teve um sonho inquietante e contou-o ao pai. O sonho e a imaginação onírica eram umas das principais fontes de inspiração de Edgar. Ele entusiasmou-se pelo relato do filho e resolveu pintá-lo, utilizando também como referência um texto no qual Michael havia tentado transformar em conto seu sonho. Anos mais tarde, Michael retoma o assunto dando nova e definitiva forma ao conto. Agora, sua inspiração não se resume mais apenas a seu sonho, nem ao texto primitivo, mas inclui também a interpretação pictórica que o pai lhe dera em seu quadro. O conto se chama “O Filho de Ninguém”, e faz parte do livro O Espelho no Espelho. Na esfera que Michael segura no quadro está gravado em grego o seu lema preferido na época, a súplica dirigida pelo “bom ladrão” a Jesus: “Lembra-te de mim quando entrares em teu reino”. 



Retrato de Michael Ende
(1951)
Edgar Ende - Óleo sobre tela 120 x 90 cm


Obras de Michael Ende traduzidas para o Português:
Jim Knopf e Lucas, o maquinista e Jim Knopf e os treze piratas (Martins Fontes), Manu a menina que sabia ouvir (Editora Salamandra), O Pequeno papa-sonho (Ática) O teatro de sombras de Ofélia,(Ática) A história sem Fim (Martins Fontes), O espelho no espelho(Círculo do Livro),  A Escola de Magia (Martins Fontes) Dagoberto Dobradura (Martins Fontes) , Norberto Nucagrossa  (Martins Fontes)
Ola Ole, Beto Por Quê  (Martins Fontes) , Ursinho de Pelúcia e os Animais  (Martins Fontes, O Elixir dos Desejos (Salamandra) 

 Fonte: 
http://www.samamultimidia.com.br

2 comentários:

  1. Olá: Desculpa repetri-me, mas no teu blog vive-se e sente-se cultura. Da minha parte obrigado. Quanto ao Ende é um escritor meu de referência por várias razões uma é a nossa oposição ao capitalismo e consumismo, mas isso é apenas uma infima parte dos motivos que me levaram a lê-lo.
    Uma vez mais parabéns pelo nível e multiplicidade eu continuarei a visitar-te para aprender
    Beijos

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  2. Caro António,
    Fico feliz que as informações postadas em meu espaço possam acrescentar positivamente em tua jornada. Obrigada por 'linkar' o endereço de meu Blog, muito me alegra.
    Desejo um ótimo final de semana!
    Um abraço :)

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