4 de maio de 2010

Xilogravura na Literatura de Cordel



 “Em toscos pedaços de madeira, o artista popular nordestino construiu a mais rica e instigante expressão plástica da cultura brasileira. De pouca leitura, o artista usou a técnica milenar da xilogravura para retratar o seu mágico universo, onde anjos se misturam com demônios, beatos com cangaceiros, princesas com boiadeiros, todos envolvidos nas crenças, esperanças, lutas e desenganos da região mais pobre do país.
A aridez inclemente de todas as estações torna a paisagem sertaneja campo fértil para o fantástico. “Dentro da paisagem real, marcada por contrastes sociais, em que a maior sede é de justiça, os seres sofridos, desprezados e perseguidos encontram nos traços do gravador popular o campo para se transfigurarem em heróis e hóspedes de um mundo melhor.”
Jeová Franklin


Em 1907 surge no Recife pela primeira vez a xilogravura no cordel. Chagas Batista, poeta pioneiro, publica em página interna a estampa de Antônio Silvino, célebre cangaceiro. Na mesma época, Leandro de Barros, também poeta, reutiliza a figura em suas capas. Essa imagem vem a circular até 1925, com pequenas alterações.
Na Fundação Casa de Rui Barbosa, no Rio de Janeiro encontra-se a mais antiga referência do folheto.




A feitura


“Quem surgiu primeiro foi o repentista. Os repentistas iam antes nas casas. O cordelista veio depois de Leandro e outros, que escreviam no papel a mesma poesia. O repentista chega aqui e começa a cantar abrangendo tudo que tem nessa sala, o seu nome e de outro, as mulheres, os homens, o moreno, o pequeno, o gordo. Ele faz versos gozando ou elogiando todo esse povo.
O cordelista escreve com um objetivo, um enredo que vai dar um futuro para aquela história. É a mesma literatura, a mesma escritura, só que o repentista nasceu primeiro no Nordeste. A Paraíba é que é o lugar mais forte da poesia popular.
É muito difícil dar expressão a uma gravura. Eu desenho direto. Tem muitos gravadores que desenham no papel e passam para a madeira. Eu não. Pego a madeira, lixo, desenho, sai meio troncho, errado, lavo a faca, corto, imprimo e mostro. Se agradar, agradou. Se não agradar, foi brincadeira.”
J. Borges
(in J. Borges por J. Borges. Org. Clodo Ferreira. Editora UnB, 2006)



Dois fatores explicam as condições para que no início do século XX surgisse em Juazeiro do norte, Ceará, as condições ideais para as primeiras manifestações regulares da xilogravura. A vinda do entalhador italiano Agostini para esculpir as portas da igreja matriz trouxe a técnica que chamaram a atenção para uma nova função estética para a madeira.
Uma nova leva de artesãos se formou na arte de esculpir portas, guarda-roupas e santos para atender a demanda dos romeiros. Com a arte dos santeiros e tipografias improvisadas Agostini ensinou também o entalhe de matrizes de madeira para a impressão de títulos para o jornal do Padre Cícero e de rótulos de produtos fabricados pela indústria no vale do Cariri.
Com estilos opostos, Mestres Noza e Walderedo Gonçalves ganharam destaque como xilogravadores da região.  Noza, devoto, muito primitivista, produzia figuras sem detalhes. Walderedo, iniciado na arte da xilogravura dez anos depois de Noza e crédulo em relação ao Padre Cícero, foi considerado o mais clássico dos gravadores populares. Produzia ilustrações com traços finos e complexos sombreados.
Em Pernambuco, Ceará, Alagoas, Sergipe e Bahia surgiram pequenas gráficas caseiras, sem mercado de expressão. A democratização do processo produtivo de cordéis abriu espaço para a xilogravura e seus artistas.





Matrizes

Dois estilos distintos de composição foram desenvolvidos: o dos xilogravadores radicados em Pernambuco e os de Juazeiro do Norte – CE.  O primeiro, fiel às figuras isoladas do fundo da gravura, com grandes contrastes nas áreas de impressão, permite a experiência de impressões coloridas; o segundo, com sombras, fundos detalhados e complexidade de traços. 





Mestre Nosa

O precursor da xilogravura decorativa
Inocêncio Medeiros da Costa ou Inocêncio da Costa Nick era do grupo de “santeiros do Padre Cícero”. Nascido em Pernambuco, em 1897, mudou-se para Juazeiro do Norte aos 15 anos. Foi o primeiro artista a ser publicado em álbum de gravuras populares brasileiras com a seqüência da Via Sacra, em Paris (1965) e a trabalhar por encomenda para um produtor cultural. 



J. Borges

Patrimônio da Cultura Pernambucana
Nascido em Pernambuco, em 1935, é patriarca de um clã de xilogravadores. Diz que tudo que aprendeu deveu-se ao medo de cortar cana. Estudou somente dez meses em escola. Agricultor, pintor, carpinteiro, fabricante de brinquedos, poeta, foi ser cordelista, ilustrar, imprimir e vender seus próprios folhetos. Obteve reconhecimento nacional e internacional e é hoje o mais conhecido xilogravador nordestino. 

 
Gráfica São Francisco

A maior folhetaria do Nordeste
Montada em 1926, em Juazeiro do Norte pelo poeta alagoano José Bernardo da Silva. Em 1949 compra a maior gráfica do Recife, do poeta João Barros de Athayde, com o acervo de títulos dos mais renomados poetas e o melhor sistema de distribuição dos folhetos. Adotou as ilustrações em xilogravura e chegou a atingir a produção mensal de meio milhão de folhetos.


Para comemorar o centenário da xilogravura na literatura de cordel em 2007, a pedido de Jeová Franklin os artistas Abraão Batista, José Lourenço, J. Miguel, Zênio Brito, Dila, J. Borges, Nena e Marcelo Soares criaram estampas especiais com o título 100 anos de xilogravura no cordel, como capas de álbuns com vinte de suas obras. São grandes representantes do vigor da produção contemporânea de xilogravuras populares no nordeste.

“Deuses e demônios espalhados pelos versos de cordel
Lutas e desejos de promessas de encontros pelo céu

Facas e facões: vinganças de amor

Quem sentiu a quentura vinda do sertão

Vê sabedoria na gravura, vê a tinta impregnada de emoção

Povo abandonado numa esquina explodindo de emoção

Trágicas lembranças e passagens de luar e assombração

Bate o coração: a história vem misturar cantoria com cantiga e vai

Rima tão antiga, rima pobre, rima rica, vai rimando sem parar

A gravura tem a paisagem e o tremor

Que o poeta sente no coração do mundo

Na vida da gente”
                                                       Gravura, de Clôdo Ferreira, em CD do mesmo título, 2007


Mãe da Lua, uma das obras do acervo de Jeová Franklin.

Texto e imagens extraídos da edição comemorativa realizada em 2007

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Observação: somente um membro deste blog pode postar um comentário.