Fios do Tempo
O Candomblé é uma religião iniciática de caráter progressivo. Sua organização se estabelece a partir de um conceito peculiar de hierarquia onde o que está “acima” não tem, necessariamente, poder sobre o que está “abaixo”, mas vai adquirindo, com o tempo e as “obrigações”, o direito de participar e “ver” aspectos mais profundos do cotidiano religioso obtendo, com isso, mais conhecimento. A ascensão hierárquica se faz pela associação indissolúvel de tempo e conhecimento; tempo sem conhecimento ou conhecimento sem tempo constituem-se como caminhos desviantes que tornam o indivíduo inadequado à convivência coletiva. Em síntese, a hierarquia no candomblé se estabelece no sentido dos que “sabem” (no tempo) para os que “não sabem” (por terem pouco tempo).
No candomblé o saber sempre se realiza no real; quem sabe, não sabe para si nem por si, sabe a partir da necessidade e para fins. O saber é ao mesmo tempo o segredo, a necessidade e a capacidade de materializar o conhecimento, transmutando mitos em ritos, práticas e objetos. Quanto mais conhecimento tanto mais ritos, práticas e objetos.
Um caminho interessante para se constatar isso é a observância sobre o fio-de-contas que, mais que um adorno, é uma marca e uma fonte de axé. O simples colar ao ser imerso na devida mistura de folhas quinadas, associada a alguns outros materiais, transforma-se numa identificação que remete o indivíduo ao seu lugar na comunidade.
A cerimônia da lavagem das contas é, por assim dizer, a inserção do neófito no universo mítico e místico do candomblé. Ao receber seus primeiros fios-de-contas, geralmente um fio de Oxalá e outro de seu orixá pessoal[1], o então abiã[2] se apercebe da importância de Oxalá no conjunto dos orixás. Oxalá é o deus do branco, o pai dos orixás, ou seja, uma energia geradora que antecede, no tempo, os demais orixás. Oxalá pró-cria, abranda, esfria e descansa. Os primeiros conhecimentos acerca deste orixá circunscrevem-se na própria simbologia do branco que, sendo o somatório de todas as cores, traz em si todas as possibilidades de cor. É a energia de onde tudo sai e para onde tudo retorna, por isso o branco é tanto a cor que festeja o nascimento[3] como a que marca o momento da morte. O luto no candomblé é branco pois representa o retorno do indivíduo à massa informe da ancestralidade. Por isso, necessariamente, o primeiro fio que se recebe é o branco de Oxalá, simbolizando o estado de latência que caracteriza o abiã com um candidato à iniciação. O branco de Oxalá dialetiza o justo descanso com o movimento gerúndio.
No período da iniciação, o iaô, além de fazer jus a uma pequena coleção com os inhãs[4] dos orixás que participam de sua configuração espiritual, recebe algumas contas específicas que o identificam como tal; são elas o mocam[5], o quelê[6] e os deloguns[7]; nesta ocasião os fios irão “comer”[8] junto com o “santo”, isto é, configurar-se-ão como verdadeiros campos de força.
Após a obrigação de três anos[9], é comum ao ainda iaô, já com alguma graduação, ser presenteado com alguma conta mais “enfeitada” adquirindo, com isto, o direito de criar para si colares mais rebuscados com miçangas um pouco maiores e até alguns poucos corais, primando ainda pela discrição.
Por ocasião da obrigação de sete anos, o agora ebomi adquire adornos que o identificam como tal: o runjebe, o lagdbá, o brajá, o âbar, o monjoló, os corais, as contas africanas multicoloridas e o alabastro. Mais que isso, ganha a liberdade total de criar seus próprios fios, seja no tamanho das contas, na riqueza dos detalhes ou dos próprios materiais a utilizar (ouro, prata, etc.). O ebomi já conhece os seus “fundamentos”, por isso a liberdade.
Entretanto, não termina aí o aprendizado. Até os sete anos o iaô é tutelado e educado por seus iniciadores, a partir daí é tutelado pela própria liberdade. Muito embora, parafraseando José Flávio Pessoa de Barros, “a modéstia não seja bem-vinda no candomblé”, o bom-tom e a justa medida são apreciadíssimos. O ebomi deve ser um exemplo para o iaô, principalmente no que tange ao manuseio de sua própria liberdade e a adequação às situações, dentro e fora da comunidade. A confecção e utilização dos fios-de-contas deve ser sempre um exercício da criatividade, mas tambérm deve responder à uma estética própria do candomblé que preserva através de seus objetos a sua própria história; inovações excessivas ferem a justa medida e tornam-se inadequadas, posto que os objetos são importantes instrumentos de apoio à manutenção da tradição oral.
Ibá re ô, Egbon mi.
[1] Quando este não é filho do próprio Oxalá.
[2] Primeiro patamar da hierarquia. O abiã ainda não é iniciado, é um candidato à iniciação que já pode participar da vida cotidiana da comunidade-terreiro, contribuindo, via de regra, com serviços domésticos, funções que lhe permitem tecer as primeiras observações que se tornarão conhecimentos ou não, conforme sua capacidade e inteligência.
[3] Todos os iaôs vestem-se de branco por pelo menos três meses e repetem o uso do branco durante todas as suas posteriores obrigações.
[4] Fios de uma só “perna”, isto é, o colar simples de uma só fiada de miçangas cuja medida deve ir até a altura do umbigo.
[5] Cordão de palha da costa trançada cujos fechos são duas “vassourinhas” de palha; este cordão se constitui um símbolo do iaô e é, geralmente, preservado por toda vida. A palha da costa é utilizada ainda na confecção de quatro outras tranças que serão amarradas nos braços, recebendo aí o nome de icam, na cintura (a umbigueira) e no tornozelo, onde será acrescida de um guiso (o chaorô), cuja função é sinalizar o lugar onde se encontra o iaô através do barulhinho que produz.
[6] Gargantilha confeccionada com 8 fiadas de miçangas, entremeadas de firmas, todas na cor do orixá que está sendo “feito”. O quelê simboliza a indissociação entre o orixá e o iniciado.
[7] Colares feitos de 16 fiadas de miçangas com um único fecho cuja medida, como os inhãs, vai até a altura do umbigo. Cada iaô deve possuir, via de regra, um delogum de seu orixá principal e outro do orixá que o acompanha em segundo plano. No candomblé essa associação nada tem a ver com o “pai e mãe” da umbanda. Nada impede que um iaô seja filho de dois “santos” homens ou duas “santas” mulheres.
[8] Serão banhados pelo sangue sacrificial.
[9] O processo de iniciação inclui além da feitura três outras obrigações: de 1, de 3 e de 7 anos (6 para os filhos de Xangô), quando enfim o neófito pode se dizer iniciado, estando apto, inclusive, a iniciar outras pessoas. A partir de então deixa de ser iaô para tornar-se um ebomi (corruptela de egbon + mi = irmão mais velho)
Fio de Xangô
Júnior de Odé
Fio de Oxalá
Júnior de Odé
Fio de Xangô
Jorge Rodrigues
Fio de Oxalá
Jorge Rodrigues
Detalhes de fios diversos
Dorso - Zélia
Beleza por um fio
Na mitologia sobre a invenção do candomblé, os colares de contas aparecem como objetos de identificação dos fiéis aos deuses e o seu recebimento, como momento importante nessa vinculação. De acordo com o mito, a montagem, a lavagem e a entrega dos fios-de-contas constituem momentos fundamentais no ritual de iniciação dos filhos-de-santo, os quais, daí em diante, além de unidos, estão protegidos pelos orixás.
Feitos com contas de diferentes materiais e cores, esses fios apresentam uma grande diversidade e podem ser agrupados por tipologias de acordo com os usos e significados que têm no culto. Assim, acompanham e marcam a vida espiritual do fiel, desde os primeiros instantes de sua iniciação até as suas cerimônias fúnebres. Como os momentos da montagem e do recebimento, também o instante da ruptura é significativo; entretanto, o rompimento do fio-de-contas, mais do que indicar um mau presságio, que assusta e preocupa o indivíduo e a comunidade, pode ser o início de um novo ciclo, um recomeço, um momento de virada que pede um novo fio. Dos primeiros fios – simples, ascéticos e rigorosos – às contas mais livres, exuberantes, complexas e personalizadas que a pessoa vai produzindo ou ganhando ao longo do tempo, delineia-se o caminho de cada um em sua vinculação aos orixás e à comunidade de terreiro. Dessa maneira, mais do que a liberação do gosto particular, as transformações nos colares revelam o conhecimento adquirido pela pessoa e sua ascensão na hierarquia religiosa. De tal modo que um leigo pode passar desapercebido por um fio-de-contas ou vê-lo apenas como um adorno, enquanto um iniciado na cultura do candomblé o tomará como um objeto pleno de significações, que pode ser “lido” e no qual é possível identificar a raiz, o orixá da cabeça e o tempo de iniciação, entre outros dados da vida espiritual de quem o usa.
Detalhes de fios diversos
Detalhes de fios diversos
Dupla de dorsos femininos
Detalhes de fios diversos
Detalhes de fios diversos
Festa de Iemanjá
Sepetiba, Rio de Janeiro
Festa do Bonfim
São Cristóvão, Rio de Janeiro
Dos ritos secretos e espaços fechados do culto aos orixás, os fios-de-contas ganharam o mundo e adquiriram novos usos. Da África vieram para o Brasil. Aqui, hoje, devido ao sincretismo religioso, além dos espaços de culto, é possível observar a presença de fios-de-contas em lugares inusitados como automóveis e botequins, mas já destituídos das funções e sentidos primordiais, usados apenas para proteger os espaços e as pessoas contra maus agouros. Apesar de essas mudanças estarem associadas à diluição dos significados, os diferentes usos cotidianos e excepcionais, dentro e fora do culto, mais ou menos fiéis à tradição, revelam o valor dos fios-de-contas na cultura brasileira, o sentido em colecioná-los e expô-los. Além de chamar a atenção para o colar, um objeto de destaque na cultura material de outras tantas sociedades – um tipo de objeto que é mesmo universal –, a exibição de coleções produzidas em diferentes momentos, associada a imagens atuais de festas públicas, cerimônias, Ialorixás e Babalorixás, permite observar o candomblé na sua contemporaneidade.
Os primeiros fios-de-contas integrados à coleção do Museu do Folclore Edison Carneiro foram adquiridos no final dos anos 1970 no Mercadão de Madureira, em uma típica loja “de ervas” ou “de macumba” – conforme se diz, de acordo com a afinidade ou o preconceito –, onde, entre tantos materiais e artefatos, vendem-se as miçangas e, não raro, os colares já prontos. São típicos, portanto, de uma produção em série, sem autoria, que respeita os códigos materiais, cromáticos e quantitativos, sem a exigência do processo de fabricação ser vinculado ao ritual de iniciação. De uma beleza singela, esses fios apontam por contraste para a opulência dos fios produzidos pelos artistas Jorge Rodrigues e Junior de Ode, incorporados recentemente à coleção do Museu.
As mudanças no modo de identificação dos adeptos do candomblé, indicadas nas peças e fotos em exibição, deixam entrever uma crescente valorização da estética, o uso extravagante de vestimentas e adereços que contribui para o que Reginaldo Prandi denominou de a “hipertrofia ritual das religiões afro-brasileiras”. No entanto, é preciso distinguir entre a estetização do culto, que decorre do abandono dos valores éticos e da conseqüente redução dos significados a meras aparências, e a dimensão estética intrínseca ao culto aos orixás, o valor fundamental da arte nas culturas originais africanas.
A plasticidade inerente ao candomblé faz a diferença entre artes maiores e menores ter ainda menos sentido do que na história da arte de origem européia; como tudo é significante, é possível ao olhar estender-se tanto por visadas panorâmicas dos conjuntos quanto em miradas certeiras de minúsculos detalhes. Assim, apesar de ser um culto de segredos, é como se o candomblé fosse uma religião propícia, destinada mesmo aos múltiplos recortes da fotografia. O que faz perguntar por que o candomblé tem uma fortuna crítica escrita riquíssima – de autores como Nina Rodrigues, Edison Carneiro, Roger Bastide, Pierre Verger, Muniz Sodré, Reginaldo Prandi e José Flavio Pessôa de Barros, entre outros –, mas não um acervo iconográfico à altura de sua fotogenia, ainda que possam ser lembradas as fotos excepcionais de Pierre Verger e José Medeiros. A estes, junta-se a partir de agora o nome de Francisco da Costa, que com suas fotos traduz com eficácia e encanto a beleza do candomblé.
Texto 1: Guilherme Lemos
Texto 2: Roberto Conduru
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Fotos: Francisco Moreira da Costa
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